Quando criança, me impressionava ver pela televisão imagens dos rituais xiitas de autoflagelo. Hoje, pela primeira vez, presenciei uma dessas cerimônias, ao vivo e a cores, acompanhado do repórter fotográfico da Folha Apu Gomes, que conseguiu captar, em imagens excepcionais, a intensidade do momento. As cenas foram registradas num bairro popular ao sul de Teerã.
O autoflagelo, que consiste em jogar os braços sobre o próprio peito, bater na cabeça ou chicotear as costas até cortar a carne, ocorre durante a Ashura, o feriado que comemora o martírio do imã Hussein, neto do profeta Maomé. Imã é o título dado pelos xiitas aos santos que descendem do profeta.Hussein, sua família e seus companheiros foram dizimados por uma facção islâmica inimiga, no ano de 680, em meio a disputas para comandar os crentes após a morte de Maomé. O extermínio foi lento e atroz. Primeiro, a turma de Hussein ficou encurralada, sem água, agonizando no deserto. Depois, foram decapitados e queimados. Mulheres e crianças também.
Tudo isso ocorreu após a batalha de Karbala, cidade situada no atual Iraque. Foi um dos eventos que contribuíram para rachar o islã entre suas duas principais correntes. De um lado, sunitas, partidários da sucessão a Maomé em função do mérito espiritual e adeptos de uma teologia mais ortodoxa. Do outro, xiitas, defensores de uma transmissão por laços de sangue adeptos de uma doutrina mais mística e cheia de símbolos. O festival de Ashura é ao mesmo tempo uma homenagem ao imã Hussein e uma maneira de os xiitas compartilharem parte de sua dor.
Já faz algum tempo que o governo iraniano baniu o autoflagelo com facão, que passava ao mundo imagem insana. Xiitas no vizinho Paquistão ainda recorrem à prática extrema. No Irã, o mais comum é ver, ao som de cânticos de lamurio, uma aglomeração de homens sem camisa jogando braços para o alto antes de bater no peito em ritmo sincronizado, gerando um enorme bumbo linear que espalha pelo ambiente uma sensação de transe. Também é frequente o autoflagelo com chicote ou correntes de metal, que pode levar ao sangramento.
A cerimônia que Apu e eu presenciamos dentro durou mais de uma hora. O ritual é uma loucura para padrões ocidentais. Mas é difícil não se comover com a entrega absoluta à fé e o sentido de sacrifício.
Passados alguns minutos dentro do calor da mesquita abarrotada de gente, a sensação é de quase hipnose diante do barulho das compassadas batidas corporais. Ao final, centenas de homens com o peito vermelho de tanta pancada, alguns aos prantos, formaram fila para receber um prato de comida oferecido pela mesquita. Mulheres fazem ritual semelhante numa área reservada à qual não tivemos acesso.
Momentos antes, assistimos a uma encenação na qual atores vestidos de umíadas (carrascos da história, segundo a versão xiita) batiam em crianças que representavam filhos de Hussein e de seus aliados. Algumas pancadas eram de mentirinha, outras assustaram a molecada.
A experiência foi um banho de exotismo, mesmo para quem, como eu, mora há dois anos no Irã. Sim, o país é uma teocracia xiita e escancara por toda parte a predominância da religião na gestão da coisa pública.
Mas Teerã é uma metrópole moderna que tem várias facetas bem mais próximas do nosso estilo de vida do que se possa imaginar. O bairro onde vivo se parece com muitos lugares no Ocidente, não fosse pelas mulheres com cabelo coberto e pelas placas de sinalização em farsi –e inglês. A celebração de Ashura foi um mergulho na psique espiritual iraniana.
fonte: http://samyadghirni.blogfolha.uol.com.br/2013/11/14/bater-no-proprio-corpo-ate-sangrar/
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