A luta nas ruas, as pessoas simplesmente querem mais e percebem que têm força para impor suas exigências
Se a linguagem do futebol valesse na vida intelectual, diria que Moisés Naím marcou um gol de placa, com seu O fim do poder. A tese central do livro é, em boa medida, contraintuitiva. O poder econômico parece se concentrar; a China, uma tirania, é a economia mais dinâmica do planeta, e a revista britânica The Economist anunciou, com uma montanha de dados e uma imagem de Lênin na capa, que vivemos em plena era do capitalismo de Estado. Naím tem consciência do problema. “Sei que defendo que o poder está se degradando”, diz ele, “num cenário em que as manchetes apontam o contrário.” O ponto é que Naím não trabalha com o curto prazo. Como bom economista e acadêmico respeitado, faz o que muitos intelectuais, por preguiça, se recusam a fazer: trabalha com estatísticas. Cuida para não cair no logro das próprias impressões e vai formando seus argumentos.
A ideia central de Naím diz respeito não tanto ao desaparecimento, mas à fragmentação do poder. A primeira imagem que usa é o xadrez. Em 1970, havia 71 grandes mestres. Hoje, seu número já ultrapassa os 1.200. Um grande mestre é um jogador “a quem o campeão do mundo deve ceder vantagens”. Alguém poderia retrucar dizendo que não vivemos o fim, mas a proliferação do poder. Há muito mais enxadristas capazes de tirar o sono do campeão mundial, que presumivelmente ficará menos tempo no topo do ranking. É isso mesmo, dirá Naím. Há simplesmente mais gente em condições de competir. Na economia, no mundo político, na guerra pela informação. A vida anda mais complicada para quem detém o poder e relativamente mais fácil para quem quer entrar no jogo.
O dado mais evidente a demonstrar a tese de Naím é a própria dispersão do poder entre os Estados soberanos. Em 1947, eram 67 países, ao redor do planeta, em comparação com os 193 existentes, atualmente. Também a democracia se expandiu. Segundo a Freedom House, (uma organização sediada nos Estados Unidos dedicada a promover a expansão dos valores democráticos), temos hoje 117 democracias eleitorais. Eram 69, no final dos anos 1980. Pela primeira vez na história, mais da metade da população do globo vive em regimes democráticos. As coisas andam se complicando, até para as tiranias. Mais de 120 mil protestos de rua infernizam a vida da cúpula chinesa, a cada ano. Em Cuba, os irmãos Castro precisam aturar a blogueira Yoani Sánchez, mundo afora, falando o que lhe der na telha. Não é preciso lembrar a Primavera Árabe nem como o regime iraniano recuou do apedrejamento de Sakineh Ashtiani. Naím é taxativo: “Mesmo as autocracias são menos autocráticas hoje”. Talvez vá aí um excesso de otimismo. Ao menos nos casos acima, as autocracias respiram. Mas é só uma questão de tempo, sugere Naím.
No terreno da economia, o cenário se repete. O capitalismo se descentraliza. Entre as 2.500 maiores empresas do planeta, na lista Forbes de 2012, há 200 companhias americanas a menos do que havia cinco anos antes. Vivemos o que o economista Jeffrey Sachs chama de “era da convergência”. Naím menciona um dado, algo curioso, fornecido pelo Tesouro australiano: no dia 28 de março de 2012, pela primeira vez na história, o tamanho das economias menos desenvolvidas superou os países ricos. No interior das empresas, as coisas também mudaram. O tempo de permanência de um CEO, em companhias de maior porte, caiu pela metade. De dez anos, em média, nos anos 1990, para 5,5 anos, nos dias de hoje. Estamos falando de menos previsibilidade, concorrência mais acirrada e mais barreiras para pôr decisões em prática.
O coração da tese de Naím são as “três revoluções” do nosso tempo. Sua descrição faz do quarto capítulo a melhor parte do livro. A primeira é a “revolução do mais”. Mais renda e mais riqueza, para começar. A renda per capita cresceu 3,5 vezes, desde 1950. Mais gente educada e com acesso à informação. Oitenta e quatro por cento da população global é hoje alfabetizada, em comparação com 75%, em 1990. Os números sugerem aquela que talvez seja a grande tendência desta primeira metade de século XXI: a migração da escassez para a abundância, em escala global. Naím segue, grosso modo, a percepção de intelectuais como Robert Shapiro, Jeremy Rifkin, Peter Diamandis e do sumo pontífice do tecno-otimismo global, Ray Kurzweil, engenheiro-chefe do Google, cuja tese mais popular diz que o avanço tecnológico logo mais nos levará às portas da imortalidade.
Naím não chega a tanto, mas tem coragem de reconhecer o que muitos, por charme ou ideologia, fazem de conta que não enxergam: o fim gradativo da pobreza e a emergência da sociedade de classe média. Até o final da década, a classe média global será formada por mais de 3 bilhões de pessoas. Gente mais bem informada, ávida pela integração ao mundo do consumo, impaciente com a inépcia e a corrupção dos governos. O fim do poder não deixa de ser, desse prisma, um manifesto de esperança. Acredita que um somatório de avanços materiais e sociais nos levará ao progresso civilizatório. Naím chega mesmo a sugerir uma fórmula iluminista. Diz que “quando as pessoas são mais numerosas e vivem vidas mais plenas tornam-se mais difíceis de regular, controlar e dominar”. Lendo essas palavras, me vem à mente Stefan Zweig (escritor austríaco) e sua descrição elegante da República de Weimar, seguida da imensa desilusão, com a prostração de alguns milhões de alemães bem-educados ao nacional-socialismo.
A fórmula iluminista se repete quando ele trata de sua segunda revolução, a “mobilidade”. “O poder precisa de uma audiência cativa”, afirma. Naím cita a frase, de gosto duvidoso, do ex-conselheiro de segurança nacional do governo Carter, Zbigniew Brzezinski. Segundo ele, é mais fácil, nos dias de hoje, matar 100 milhões de pessoas do que as controlar. De todo modo, há estatísticas para sustentar a tese de Naím: o número de migrantes, planeta afora, cresceu 37% nos últimos 20 anos; em 2012, pela primeira vez, nasceram mais bebês “não brancos” nos Estados Unidos. O planeta se move. As pessoas viajam mais. Multiplicou-se por quatro o fluxo turístico, desde os anos 1980. Vivemos num planeta urbano. Desde 2007, a população nas cidades superou as áreas rurais. É no ambiente urbano, desde sempre, que florescem o pensamento crítico e a contestação ao poder.
Naím evita superestimar o papel da internet, na erosão do poder, e isso soa como um erro. Difícil não perceber como as redes sociais e os smartphones explodiram o poder. O sociólogo espanhol Manuel Castells estudou as revoltas populares em mais de 80 países em seu Redes de indignação e esperança. Em quase todas, o elemento flash mob dava as cartas. Os ativistas digitais saíram às ruas. O resultado é paradoxal: para os donos do poder, as coisas ficaram mais difíceis. O poder se tornou, por definição, instável. Para quem contesta o poder, as coisas não ficaram necessariamente mais fáceis. Dez capas seguidas de revista contra o governo, num país do tamanho do Brasil, não parecem causar dano maior às estruturas do poder. Para cada notícia contra, há dez versões a favor, e assim se segue, numa espécie de jogo de espelhos. Há a internet inteira, as redes, a blogosfera, a amortecer o impacto de cada notícia. Algo que lembra o filósofo francês Jean Baudrillard, o lírico pós-moderno, para quem a sociedade da informação fez com que o universo virtual se expandisse a uma velocidade maior que a real. O resultado é que a informação se banaliza. O mesmo ocorre com a atividade intelectual. O escritor Vargas Llosa já identificara o fenômeno. Os intelectuais perdem relevância como consciência crítica da sociedade. Ainda bem, penso eu. Isso ocorre pelas razões de Naím: pelo excesso. De ideias, de gente escrevendo, opinando, argumentando, publicando.
O fim do poder lembra que vivemos a época do efêmero. O filósofo francês Gilles Lipovetsky escreveu um livro sobre isso, O império do efêmero. Em algum momento, entre junho e julho do ano passado, no auge das manifestações que tomaram as ruas do país, falava-se na emergência de um “novo Brasil”, dizia-se que o gigante acordara, que nada seria como antes. No calor da hora, os aumentos de passagens de ônibus foram cancelados em algumas capitais. Depois disso, o que se viu? Agências bancárias quebradas, rebeldia sem causa, agenda nenhuma e um debate triste sobre a morte de um brasileiro, na Central do Brasil. A mesma instabilidade efêmera ocorreu agora, em janeiro, com os tais rolezinhos. Muita gente boa viu nisso a “revolução da periferia”. Bem antes que o Carnaval chegasse, o assunto morreu.
Naím vincula o fim do poder a uma revolução do pensamento. Em primeiro lugar, há mais expectativa. Não é a privação que produz a revolta, mas a esperança. O aumento da renda tende a gerar uma inconformidade positiva. As pessoas simplesmente querem mais e percebem que dispõem de poder para exigir. Em segundo lugar, vivemos uma época de ceticismo. Dos anos 1960 até hoje, o percentual de americanos dizendo que o governo “faz a coisa certa” caiu de 75% para 25%. Os governos de hoje, decididamente, não são piores que os do passado. A diferença é que John Kennedy podia ter quantas amantes quisesse, ao passo que François Hollande mal pode dar um passeio de lambreta. O poder foi profanado, e teremos de aprender a conviver com a permanente sensação de instabilidade que acompanhará a vida democrática.
A erosão do poder traz ainda um perigo: a perda de governabilidade das democracias. Em 2012, 30 das 34 democracias mais ricas do planeta tinham presidentes ou primeiros-ministros com minoria no Parlamento. O resultado é a paralisia. O exemplo mais significativo foi o fechamento do governo americano, por 16 dias, em outubro de 2013. No Brasil, o governo lidera uma coalizão majoritária, mas o quadro de paralisia é semelhante. O país já cansou de falar em reformas estruturais, mas pouco avança. Vivemos sob o espectro de uma sociedade hiperorganizada, repleta de redes de protesto, com uma miríade de grupos sem força para chegar ao poder, mas capazes de “paralisar o jogo”. São os sindicatos impedindo a modernização da legislação trabalhista, corporações de professores impedindo a reforma da educação ou, num plano mais amplo, o governo em marcha lenta, com seus 40 ministérios, perdido numa coalizão de 14 partidos.
Naím revela que prepara um novo livro. Algo sobre como devemos agir num mundo “após o poder”. Um mundo em que o papa se aposenta, como bom funcionário da Santa Sé, e um pacatozoológico dinamarquês não pode dar uma girafa para o almoço dos leões sem causar uma consternação global. Em que o presidente dos Estados Unidos, após denúncias de um funcionário da CIA, precisa jurar que não espionará mais a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e líderes amigos. O mesmo presidente que não consegue reunir forças e apoio internacional para uma intervenção militar no regime genocida da Síria. O ditador Bashar al-Assad continua lá, ainda que agora seja forçado a sentar numa mesa de negociação.
Dizer que o planeta está prestes a realizar o sonho kantiano, da grande comunidade de repúblicas, em que vigora a hospitalidade universal, seria um exagero. Mas o mundo é, hoje, claramente mais hostil aos infratores de direitos. A cena das multidões passeando pelo palácio do presidente Viktor Yanukovich, recém-deposto na Ucrânia, e o levante popular contra o regime chavista, na Venezuela, reforçam a tese de Naím. Ele diz que nossa época assiste a um “consenso moral jamais visto” sobre como os países devem se comportar. Talvez seu próximo livro mereça um capítulo sobre como retirar esse consenso da esfera moral e colocá-lo em prática. Sobre o que fazer com a Coreia do Norte e, mais difícil, com tipos como o ex-astro de basquete Dennis Rodman e todos os apreciadores de regimes autoritários mundo afora. Sobre como criar uma cultura democrática forte o suficiente para evitar que se repita a história trágica da elegante República de Weimar.
* Fernando Schüler é doutor em filosofia (UFRGS), diretor do Ibmec RJ e curador do Projeto
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