A foto de hoje, de um guerreiro lambuzado de barro e com dedos afiados de bambu, necessita algumas palavras para que seu contexto seja melhor compreendido.
A imagem foi tomada durante um festival tradicional nas montanhas do país, quando acompanhei o fotógrafo Sebastião Salgado na jornada de preparação de sua obra Gênesis. Entramos em contato com o chefe de um vilarejo da região de Goroka e solicitamos a permissão para fotografar os “guerreiros” em um ambiente natural. Nosso guia local recomendou uma cachoeira nas imediações. E lá fomos nós.
Salgado notou quando um dos guerreiros entrou na água do riacho e acompanhou o movimento dele. Em um determinado momento, o guerreiro voltou-se na direção do fotógrafo e, como para assustá-lo, abriu os braços e os dedos. Salgado estava bem mais perto dele do que eu e fotografava com uma grande angular. Sua imagem, publicada no livro, inclui quase toda a cachoeira. Eu, com uma teleobjetiva 200mm, fiz a foto do detalhe.
Embora muitos confrontos continuem a existir na região – nos quais a polícia e o exército nacional preferem não se meter –, os Yugus estão convencidos de que não vale mais a pena entrar em batalhas. “Durante uma guerra, não dormimos e nem comemos direito, as mulheres e as crianças sofrem muito e não temos liberdade de movimento. Quando perdemos, as compensações são altas”, diz Hetaya.Um pouco de história. Para mim, o assunto mais peculiar de Papua-Nova Guiné é a guerra tribal. Os conflitos entre clãs são causados por três razões: roubo de terra, de mulher ou de porco. “Nos combates, usamos apenas nossas armas tradicionais, nenhuma arma de fogo”, afirma Anthony Hetaya, um dos líderes do clã Yugu de Lakawanda A última batalha de sua comunidade foi contra o clã Lai na década de 1980. “Perdemos a guerra. Morreram dois membros de nosso clã e tivemos de pagar uma compensação de 175 porcos vivos.”
Um fato que ajuda a entender a quantidade de confrontos é o número de idiomas falados no território: 820. Com apenas seis milhões de habitantes repartidos em uma área menor do que o estado da Bahia, Papua-Nova Guiné é o país que possui a maior diversidade linguística do mundo. Isso significa que, na prática, basta atravessar um vale ou cruzar uma montanha para encontrar uma nova língua e outro grupo étnico. Essa convivência entre povos diferentes (mas que vivem apenas do outro lado de uma serra) também trouxe discórdias.
A lenda de guerra tribal mais insólita é a dos homens-de-barro. Os guerreiros de uma tribo das montanhas de Goroka invadiram as terras de outra etnia. Atearam fogo nas casas de palha, mataram os homens e tomaram as mulheres mais jovens. Os sobreviventes fugiram, mergulhando nas águas lamacentas do rio Asaro. Quando se reagruparam, notaram que seus corpos tinham uma coloração esbranquiçada: o barro da água do rio havia secado sobre a pele.
Esse tom fantasmagórico inspirou o pequeno grupo a conceber um contra-ataque, aproveitando o medo dos maus espíritos como estratégia. Usando uma estrutura de gravetos para criar enormes cabeças, eles moldaram, com a lama do rio, terríveis caras de fantasmas. As máscaras tinham bocas deformadas, orelhas imensas e narizes como se fossem focinhos de porco. Untaram todo o corpo com barro e utilizaram, como prolongação dos dedos, compridos pedaços afiados de bambus.
À noite, os sobreviventes, camuflados como assombrações, regressaram ao seu vilarejo, agora em mãos do inimigo. O grupo começou a golpear violentamente seus dedos de bambus, uns contra os outros. O barulho aterrorizante fez com que a tribo acordasse e desse de cara com os fantasmas. Apavorados, todos fugiram e nunca mais voltaram a atacar aquela comunidade. O episódio de bravura e astúcia passou a ser um símbolo de Papua-Nova Guiné e os homens-de-barro tornaram-se heróis nacionais.
Encontramos os homens-de-barro em um festival cultural, o sing-sing de Mount Hagen. Mesmo iluminados por um forte sol de meio-dia, as figuras são horripilantes. Principalmente quando ameaçam – nativos e estrangeiros – com suas longas unhas de bambus.
Os sing-sings aconteciam apenas em vilarejos isolados. A partir dos anos 1950, o festival passou a servir como um exercício de integração nacional. Em vez de as tribos se encontrarem para resolver diferenças de fronteiras agrícolas e entrarem em confronto, o sing-sing pretendeu ser uma “batalha cultural”. O grupo que estivesse mais decorado e fizesse a melhor apresentação ganharia um prêmio. Mas como a guerra tribal continuava na memória genética, as primeiras competições acabaram gerando agitação. Os que não haviam sido premiados, inconformados com a decisão do júri, passavam ao confronto, aproveitando que já estavam armados com lanças e machados. Conclusão: hoje, os sing-sings não oferecem mais prêmios.
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