Um imenso canavial plantado em 11 milhões de metros quadrados deu lugar à mais moderna e produtiva fábrica de automóveis do mundo, promovendo a transição em apenas dois anos, sem escalas, de ciclos econômicos separados por quase cinco séculos de história. O início da operação do Polo Automotivo Jeep na Zona da Mata Norte de Pernambuco, inaugurado oficialmente na terça-feira, 28, na pequena Goiana, substitui a monocultura agrária da cana-de-açúcar – primeira grande riqueza brasileira que começou a ser explorada na região ainda no século 16 – pela sofisticação tecnológica da indústria de transformação do século 21, onde entram chapas de aço de um lado e saem automóveis de alto valor agregado de outro, não sem antes passar por 700 robôs de última geração e pelas mãos bem treinadas de mais de 2 mil trabalhadores, muitos deles ex-lavradores. Eles poderão somar 3,8 mil quando a planta atingir plena capacidade de 250 mil veículos/ano, ao ritmo de 45 unidades/hora.
A grandiosidade do projeto pode ser medida pelo tamanho do investimento, de R$ 7 bilhões para desenvolvimento de produtos, construção da fábrica de automóveis e do parque de fornecedores no mesmo terreno. É o maior aporte inicial já feito no Brasil em uma única unidade de produção por um fabricante de veículos, no caso a Fiat Chrysler Automobiles (FCA). Goiana sedia a primeira planta da companhia após a criação formal do grupo, em 2014, mas já serviu de laboratório para unir as sinergias entre Fiat e Chrysler desde o início das obras, em dezembro de 2012.
Exemplo disso é o americano Joe Ozdowy, chefe de prédios e facilidades que trabalha há 31 anos na Chrysler (agora FCA), que já em 2012 foi escalado para coordenar toda a construção do polo com 530 mil metros quadrados de área construída, 260 mil m2 da fábrica e 270 mil m2 dos fornecedores, incluindo prédios e toda a infraestrutura industrial, como fornecimento e tratamento de água, energia, ar-comprimido, esgoto etc. Quase um ano depois, em novembro de 2013, chegou ao canteiro de obras de Goiana o italiano Denny Monti, com 20 anos no Grupo Fiat, para montar todo o maquinário e equipamentos da fábrica.
“Foi o maior projeto de construção civil não-governamental do mundo. Megaempreendimentos assim surgem talvez uma vez por década”, disse Ozdowy, que se autodenominou Lucky Joe (Joe Sortudo) por ter participado da maior empreitada de sua vida, que chegou a reunir 10 mil pessoas trabalhando no pico das obras. Para construir a fábrica pernambucana a FCA contratou o consórcio formado pela brasileira Construcap e a americana Walbridge, que nos últimos 50 anos foi responsável por erguer mais da metade das plantas do setor automotivo nos Estados Unidos.
Ao ver todas as máquinas funcionando apenas um ano depois de sua chegada, Monti definiu assim a obra que ajudou a construir: “É a fábrica mais bonita do mundo”. Mais do que isso, já pode ser considerada uma das mais eficientes do planeta. “Aplicamos aqui conceitos de flexibilidade, modularidade e automação únicos no mundo, que nos permitem montar até quatro modelos de carros diferentes ao mesmo tempo e na mesma linha”, explica Monti. Futuras expansões também estão previstas no projeto. A planta poderá dobrar sua capacidade para 500 mil unidades/ano, pois há espaço de sobra para ampliar os prédios.
MELHORES PRÁTICAS
A entrada principal da fábrica em Goiana e o Communication Center, área administrativa onde ninguém tem mesa ou cadeira fixos
Embora tenha sido oficialmente batizada como fábrica Jeep – a primeira da marca fora dos Estados Unidos –, está certo que em Goiana poderão ser produzidos carros de qualquer uma das marcas do grupo FCA, incluindo principalmente a Fiat. “Adotamos a estratégia de dar um nome às fábricas da empresa, porque achamos importante que nossos empregados se identifiquem com uma marca e isso também ajuda na propaganda. Mas fizemos aqui uma planta totalmente flexível, que pode fazer diversos modelos de veículos e também pode ser facilmente expandida”, explica Stefan Ketter, membro do conselho executivo e vice-presidente global de manufatura da FCA, que fixou residência em Recife desde julho de 2013 para coordenar a construção da planta pernambucana.
Ketter fez com que a planta fosse construída e entrasse em operação sobre os princípios do World Class Manufacturing (WCM), sistema de produção que ele implementou no Grupo Fiat a partir de 2005, quando passou a comandar a manufatura da empresa. O WCM é baseado em bons exemplos de procedimentos para aumentar a qualidade e eficiência dos processos produtivos e passam a ser multiplicados globalmente. Com isso, foram adotadas na nova fábrica as 15 mil melhores práticas já testadas e aprovadas por diversas unidades do grupo no mundo.
“Essa é a vantagem de se fazer tudo do zero. Podemos introduzir aqui tudo que já conhecemos e sabemos que dá certo. Mas Goiana também cria novas práticas servirá de exemplo para outras plantas da FCA no mundo todo”, afirma o executivo.
Um desses exemplos poderá ser o setor administrativo, o chamado Communication Center, localizado estrategicamente na base do “U” que forma o desenho da planta, de onde pode-se acessar facilmente a pé todos os três prédios da fábrica, estamparia e funilaria de um lado, pintura do outro e montagem final na parte de trás. Em formato de escritório aberto até agora inédito no grupo, ao melhor estilo de empresas de tecnologia como Google ou Apple, no espaço de 11 mil metros quadrados ninguém tem mesa, sala ou telefone fixos. Todos têm seu celular e um laptop e podem ocupar temporariamente qualquer uma das mesas e cadeiras disponíveis. Existem salas envidraçadas para as reuniões mais longas, mas a maior parte dos assuntos são resolvidos em pé, em torno de pequenas mesas altas e sem cadeiras, para abreviar as conversas. Quase não há sinais de hierarquia. A maioria das pessoas veste a mesma camiseta polo informal com a marca Jeep no peito, usada indistintamente em todas as áreas da planta, inclusive nas linhas de produção.
ESTADO DA ARTE
Uma das prensas automáticas de transferência e os robôs da funilaria: 18 batidas de 2,5 mil toneladas por minuto e, logo na sequência, as partes são soldadas em estação automatizada capaz de aplicar 150 pontos de solda em apenas um minuto e meio.
Uma porção da zona rural de Pernambuco recebeu o que há de mais moderno e eficiente em termos de instalações, equipamentos e processos conhecidos para se fazer automóveis, que pode ser considerado o estado da arte da indústria automotiva.
Essa percepção cativa o visitante desde o início do processo produtivo em Goiana, que começa na área de estamparia, instalada em uma das pontas do “U” que forma o desenho da fábrica de 260 mil metros quadrados. Ali as bobinas de aço alimentam uma linha automatizada da Schuler de limpeza e corte das chapas, que então são encaminhadas para duas linhas de prensas automáticas de transferência da Komatsu – foram necessários dois navios para trazer do Japão o maquinário de 5 mil toneladas acondicionado em mil volumes, que levaram dois meses para atravessar o oceano e outros 15 dias em caminhões entre o Porto de Suape e Goiana.
O ritmo de produção é frenético: uma das prensas trabalha a 18 batidas de 2,5 mil toneladas por minuto, a outra bate 16 por minuto a 2 mil toneladas. As trocas de matrizes, perto de 60 ao todo, são feitas em apenas 4 minutos por meio de trilhos. São moldadas cerca de 40 peças de cada carro, o que corresponde a 90% da carroceria. O setor é capaz de estampar algo como 48 mil partes para 1,2 mil veículos por turno de oito horas. Existem, ainda, duas outras prensas menores para testes de estampagem com novos ferramentais.
Logo na sequência do mesmo prédio está a área de funilaria, que recebe as partes da estamparia e de alguns outros fornecedores para soldar toda a carroceria, em uma das linhas de produção mais automatizadas e produtivas do mundo. São poucas as estações de trabalho em que há contato humano com as peças, por isso o setor pode trabalhar com o máximo de 500 pessoas. A Comau – braço de instalações industriais da FCA – instalou 650 robôs que aplicam 3 mil pontos de solda ao corpo de aço dos veículos. Também foi instalada uma linha paralela, exclusiva para treinamento do pessoal.
Em um processo inovador, os robôs estão fixados no chão e no teto, para aumentar o número de operações em uma única estação e reduzir as etapas de soldagem, evitando assim desvios na geometria da carroceria que acontecem durante o transporte entre um processo e outro. Logo no início da linha todo o “esqueleto” principal do carro (assoalho e laterais) é unido e armado por 18 robôs que executam perto de 150 pontos de solda em apenas um minuto e meio.
A funilaria tem sistema de produção extremamente flexível, pode armar 45 carros por hora de até quatro modelos diferentes sem necessidade de troca de ferramentas. O setor está conectado ao sistema central de informática, de onde recebe as ordens para montar cada carroceria de acordo com a configuração do veículo vendido.
A pintura da fábrica de Goiana é totalmente automatizada: 48 robôs aplicam o primer já misturado à cor do veículo. Na linha de montagem final, a ergonomia foi pensada para obter o máximo de produtividade.
Da funilaria as carrocerias seguem por meio de um transportador aéreo para a outra perna do “U”, onde fica a linha de pintura, também altamente automatizada, em que a mão-de-obra humana é mais utilizada para supervisionar máquinas do que executar tarefas manuais. O setor entrega até 45 carros/hora, em processo que pode abrigar até 150 veículos ao mesmo tempo e inclui dois banhos de imersão (limpeza e cataforese anticorrosão), selagem de frestas, além de pintura e aplicação de verniz totalmente automatizadas, executadas por 48 robôs, passando por quatro fornos de secagem ao longo da linha.
Com o processo “primeless” foi eliminada a aplicação de primer e um dos fornos normalmente utilizados na maioria das áreas de pintura das montadoras. A tinta-base e a cor final são aplicadas de uma só vez, reduzindo assim a quantidade de água e energia utilizadas. As tintas são à base d’água, o que evita emissões de solventes na atmosfera.
TRABALHO POR MÚSICA
Na base do “U” fica a linha de montagem final, com 150 estações distribuídas em quase 3 quilômetros para instalar cerca de 2 mil componentes aos carros. Cada uma leva cerca de um minuto para montar peças em um carro. Toda a ergonomia foi pensada para dar ao setor a mais alta produtividade do mundo. “Cada operador gasta em média 70% de seu tempo de trabalho agregando valor ao produto e o resto com ajustes e buscando componentes ou ferramentas. Esse é o maior índice já conseguido por uma fábrica e é quase impossível avançar além disso. Nas montadoras japonesas, que são referência de eficiência, esse porcentual varia de 60% a 65%”, afirma um orgulhoso Ketter.
Ao contrário da maioria das montadoras, que tem uma única entrada para receber componentes dos fornecedores, a nova fábrica da FCA tem dezenas de docas localizadas bem ao lado da linha de montagem. A todo momento chegam peças exatamente no tempo e na sequência em que elas serão usadas (just in time e just in sequence), sem formação de estoques.
O Renegade, o primeiro produto da Jeep Goiana, já nasce com 70% de conteúdo local, que deve subir a 80% nos próximos meses, sendo que 40% de suas partes já são fornecidas por 16 empresas instaladas no parque de fornecedores dentro do terreno da planta, responsáveis por entregar 17 linhas de produtos já montados, como bancos, painéis, conjuntos soldados, grandes peças plásticas e rodas já calçadas com pneus. A FCA montou um complexo sistema logístico para receber as demais peças que vêm de fornecedores do Sul e Sudeste. Eles entregam os pedidos em dois centros, um em Minas Gerais e outro em São Paulo, e de lá a própria montadora assume o transporte em linhas de caminhões criadas especialmente para abastecer Goiana.
Segundo Ketter, o controle de qualidade é uma constante, com cerca de 10 mil inspeções na linha feitas pelos próprios operadores. “A ideia é não deixar nenhum problema passar adiante”, ele destaca. Todas as ocorrências durante a montagem são registradas em um monitor com tela sensível ao toque instalado em cada estação, que alimenta o sistema central e avisa as áreas responsáveis sobre possíveis problemas a resolver. Ao fim do processo todos os carros já montados passam por uma auditoria final e um teste de pista.
Existem ainda três centros de controle para peças, veículos e processos, responsáveis por examinar meticulosamente os componentes e carros prontos por amostragem aleatória, além de zelar pela eficiência da produção como um todo. “Usamos aqui métodos de escaneamento para verificar a conformidade de peças e veículos que ainda não são usados pela maioria das montadoras. Filmamos o componente e o computador já o compara com a peça ideal gravada no sistema, para mostrar na tela do computador tudo que estiver errado ou fora de medida”, exemplifica Ketter.
Ao caminhar pela linha de montagem, o visitante pode ouvir cerca de 60 músicas diferentes a cada turno, do rock metal ao frevo. Elas são tocadas sempre que um operador precisa chamar o líder de equipe para resolver qualquer problema da estação. Existe uma música para cada um dos 60 líderes, em média um para cada grupo de seis pessoas. Sempre que ouvem sua música, ou recebem um aviso no palmtop que carregam consigo, eles correm para a estação onde estão seus liderados para verificar o que está acontecendo.
O líder é considerado o personagem mais importante da produção em Goiana. É ele quem cuida de aplicar todos os conceitos do World Class Manufacturing, assegura a qualidade, faz a ponte entre empregados e diretoria, negocia as folgas de seu grupo, intermedia problemas. Até agora, é possível dizer que todos ali trabalham por música.
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