BLOQUEADO
O empresário Carlos Alberto de Oliveira Andrade. O sigilo bancário dele foi quebrado, e seus bens ficaram indisponíveis (abaixo) (Foto: Daniela Toviansky/ Editora Globo)
O empresário Carlos Alberto de Oliveira Andrade. O sigilo bancário dele foi quebrado, e seus bens ficaram indisponíveis (abaixo) (Foto: Daniela Toviansky/ Editora Globo)
O ano de 2011 foi memorável para o empresário Carlos Alberto de Oliveira Andrade, dono da Caoa, fabricante e revendedora de carros da marca Hyundai no Brasil. Seu conglomerado vendeu mais de 200 mil veículos, de fabricação local e importada – um número inédito para a companhia. Mais de 20 carros por hora saíam de concessionárias da marca coreana e abasteciam o bolso de seu único dono, que acumulou faturamento superior a R$ 10 bilhões naquele ano. A exuberância, no entanto, não se repetiria. Não só as vendas encolheram – foram apenas 70 mil carros vendidos em 2015 –, como a empresa e seu proprietário estacionaram no trevo de confluência das três maiores operações da Polícia Federal em curso no país, Lava Jato, Acrônimo e Zelotes.
Carlos Alberto é médico. Ele sempre sentiu pulsar mais forte a veia de comerciante do que a de salvador de vidas. No hospital onde deu expediente em Campina Grande, na Paraíba, nos anos 1970, criou em menos de um ano uma rede de realização de suturas que lhe rendeu dinheiro suficiente para investir em sua verdadeira paixão, os carros. Quando se mudou para São Paulo, na década de 1980, seu objetivo era criar uma rede de revendas que faturasse quase tanto quanto a montadora americana Ford. Aos amigos, Carlos Alberto, que hoje vive recluso em sua mansão no Jardim Europa, em São Paulo, com sua segunda mulher, Izabela, e dois filhos ainda crianças, Carlinhos e João, costuma dizer que “apertando aqui e ali, sempre é possível ganhar um pouco mais”.
No mesmo ano da prosperidade, 2011, a Delegacia da Receita Federal de Anápolis, Goiás, onde fica a fábrica da Hyundai, começou a investigar a Caoa. No último dia 27 de julho, após cinco anos, a Justiça Federal determinou o bloqueio de todas as contas bancárias e dos bens de Carlos Alberto, como também os de sua mulher, Izabela, de sua filha, Emanuelle, e de 12 empresas das quais o trio consta como sócio. O sigilo bancário também foi quebrado. A decisão, obtida com exclusividade por ÉPOCA, foi tomada para garantir o pagamento de R$ 5,2 bilhões em dívidas tributárias em nome do conglomerado Caoa, resultado de nove autuações feitas pela Receita entre 2011 e 2014, que se referem à sonegação de impostos sobre automóveis importados vendidos no Brasil. Os investigadores afirmam que, por mais que seu grupo tenha gozado dos mais diversos benefícios tributários concedidos durante os governos petistas – e de alguns outros, escusos –, Carlos Alberto apelou à sonegação de impostos na ânsia de “ganhar um pouco mais” e, mais recentemente, a um engenhoso sistema para escapar ao cumprimento da lei.
O alerta para o pedido de bloqueio de bens, determinado na Justiça Federal, ocorreu porque integrantes da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que entraram na investigação da Receita, apuraram que a Caoa fazia uma operação para esvaziar seu patrimônio artificialmente. Era uma forma de evitar que a Justiça tomasse bens para garantir o pagamento da dívida bilionária. Os procuradores descobriram a tramoia quando buscavam ativos no patrimônio da Caoa para garantir o pagamento da dívida fiscal. Eles perceberam que a Caoa fez repasses bilionários para contas no Panamá, um paraíso fiscal. A documentação levantada mostra um engenhoso sistema de fraude: o grupo enviava dinheiro de forma ilegal de uma de suas unidades para empresas offshore e, depois, trazia parte desses valores de volta para outra unidade do grupo no Brasil. Apenas entre 2013 e 2014, período em que as autuações da Receita cresceram em mais de R$ 1,6 bilhão, a Caoa enviou ao Panamá R$ 6,7 bilhões.
Há tempos o Fisco tem embates com a Caoa. Em 2004, o grupo entrou com uma ação judicial questionando a incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na revenda dos veículos que importava da Ásia. A ação resultou favorável à Caoa, que conseguiu o direito de vender seus carros importados sem IPI. Mas a Receita percebeu uma trapaça: apesar de ter sido desonerada, a Caoa continuava cobrando o imposto dos clientes. Ou seja, enganava governo e o consumidor – e lucrava. Os fiscais consideraram que os valores eram “receita não declarada”. A Receita passou a cobrar R$ 5 bilhões da Caoa.
Além do bloqueio de bens, a decisão tomada pela Justiça Federal em julho amplia a investigação sobre a Caoa. O Ministério Público Federal também terá acesso à apuração da Receita e da Procuradoria-Geral da Fazenda e, em troca, compartilhará dados da Operação Zelotes, no qual seu grupo é acusado de pagar propina a lobistas para se beneficiar de Medidas Provisórias editadas pelo governo durante a era petista. Um desses lobistas era o notório Benedito Rodrigues de Oliveira, o Bené, operador do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, e preso desde abril.
COLABORADOR
O governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, do PT. Ele é acusado de ter ajudado a Caoa quando era ministro em troca de propina (Foto: Joel Silva/Folhapress)
O governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, do PT. Ele é acusado de ter ajudado a Caoa quando era ministro em troca de propina (Foto: Joel Silva/Folhapress)
No acordo de delação premiada que firmou com o Ministério Público Federal, Bené afirma que a Caoa pagou R$ 20 milhões de propina aFernando Pimentel, quando este era ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, para ser favorecida pelo programa Inovar Auto, criado pelo governo de Dilma Rousseff para conceder incentivos a montadoras que produzissem automóveis com ao menos 65% de conteúdo nacional. O Ministério Público estima que os benefícios conseguidos por meio de Bené e Pimentel tenham feito a Caoa economizar cerca de R$ 600 milhões ao ano em impostos. Graças à mão amiga do PT, o sonho de Carlos Alberto de chegar perto da Ford parecia palpável. Para o PT, a parceria também parecia uma maravilha. Segundo Bené, R$ 7 milhões dos R$ 20 milhões foram recebidos por Pimentel em contas no exterior, enquanto o restante teria sido usado em campanhas do PT em 2014. De acordo com os registros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Caoa doou R$ 2 milhões à campanha de reeleição de Dilma Rousseff. A Caoa foi fiel ao PT e não fez doações ao adversário de Dilma, o tucano Aécio Neves.
Os repasses ao exterior – tanto a políticos quanto a contas ligadas à própria empresa – são peças-chave para que os procuradores da Fazenda consigam fechar o ciclo da movimentação financeira que permitiu o esvaziamento patrimonial da Caoa. Ao levantarem os dados das contas da família e das companhias, eles encontraram menos de R$ 1 bilhão disponíveis, muito pouco para o tamanho do grupo. A maior parte desse valor está investida em imóveis, em nome da Caoa Patrimonial, que passou a comprar e incorporar prédios em 2013. A própria mansão onde Carlos Alberto mora saiu de seu nome e passou para a Caoa Patrimonial em 2014. Uma hipótese é que o dinheiro sujo tenha sido lavado pelo empresário por meio dessa empresa de incorporação. Outra hipótese é que a Caoa tenha inflado uma rubrica específica de seu balanço, a “conta de disponibilidade a terceiros”, e, por meio dela, tenha drenado dinheiro para outras companhias desconhecidas do Fisco. Tal rubrica estava vinculada a uma conta bancária em nome de outra empresa, a 2121 Participações. Em 2011, tal conta movimentava quantias irrisórias. Em 2014, passaram por ali mais de R$ 3 bilhões.
O trabalho dos procuradores da Fazenda foi facilitado pelo vazamento do Panama Papers, um conjunto de 11 milhões de documentos do escritório Mossack Fonseca, especializado em criar empresas offshore. Uma troca de e-mails mostra que o grupo Caoa pediu a abertura de pelo menos cinco offshores, mas declarou apenas uma à Receita, a Caoa Internacional. As offshores Palatina Services, a Tampa Services e a Centuria Financial Services não foram declaradas e seus beneficiários são desconhecidos. Outra offshore, a Perlas del Pacifico, foi gerida por Roberto Trombeta e Rodrigo Morales, contadores ligados ao doleiro Alberto Youssef, conselheiros do grupo Caoa e presos pela Operação Lava Jato, por operar para as empreiteiras UTC e OAS. Sob um acordo de colaboração premiada, Trombeta e Morales disseram que, nos últimos 20 anos, foram consultores tributários do grupo Caoa e constituíram empresas no exterior em nome de Carlos Alberto. Nenhuma delas, confessaram, foi declarada à Receita.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional afirma que a ação contra a Caoa, chamada de Operação Recall, não é isolada e faz parte de uma estratégia do órgão de mirar grandes devedores como forma de encorpar a arrecadação. “Acreditamos que podemos contribuir para o que chamamos de ‘justo ajuste fiscal’. Ou seja, intensificar a cobrança dos sonegadores para aliviar a carga de quem paga tributos em dia”, informou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio de sua assessoria de imprensa. Em nota, a Caoa afirma que “não vai se manifestar por força de segredo de Justiça”.
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