Rafaela Silva: medalha de ouro na Rio 2016 (Foto: Andre Arruda/ÉPOCA)
A judoca brasileira que superou a infância pobre na Cidade de Deus, uma derrota olímpica, a humilhação pública e a depressão para ganhar ouro do lado de casa
Diante do pódio, a judoca Rafaela Silva tem o olhar concentrado. Balança de um lado para o outro, como no início de uma luta. Parece estar pronta para enfrentar mais uma adversária. Estamos na Arena Carioca 2, no Parque Olímpico do Rio de Janeiro, diante da primeira brasileira a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos. “Medalha de ouro, representando o Brasil: Rafaela Silva”, anuncia a locutora. Ela sobe no pódio. Levanta os braços, acena para o público. Um sorriso começa a se desenhar no rosto da judoca de 24 anos. Rafaela recebe a medalha, alisa-a, aperta, sente seu peso. Os olhos se enchem de lágrimas. Ela venceu.
O que se passava em sua cabeça naquele momento? Rafaela conta que ali, diante do pódio, para ganhar sua medalha de ouro, foi tomada por uma lembrança recorrente. Do fatídico 30 de julho de 2012, na Olimpíada de Londres, quando perdeu nas oitavas de final. Diz que se viu de novo sendo arrastada sem forças pela técnica Rosicleia Campos, para deixar a área de competição após ser eliminada por ter aplicado um golpe ilegal. Ela estava ganhando a luta com a húngara Hedvig Karakas. Tinha aplicado uma eficiente catada de perna (segurar as pernas do oponente para derrubá-lo). O golpe tinha sido validado, mas o lance foi revisto em vídeo e levou à frustrante eliminação na primeira Olimpíada de Rafaela, aos 20 anos. Aquele momento terrível, diz ela, voltou ali, na frente do pódio do Rio. Mas desta vez o fantasma que a perseguira nos últimos quatro anos estava derrotado.
Hoje, Rafaela é orgulho nacional. Escapou de uma infância pobre na Cidade de Deus para ser aclamada a alguns metros dali, no Parque Olímpico. Mas não foi uma trajetória fácil nem linear. A história de Rafaela é a saga de uma superação. Para derrotar suas adversárias no tatame do Rio, ela precisou vencer o trauma de Londres. Depois da eliminação na Olimpíada, ela foi vítima de ofensas nas redes sociais. Muitas delas racistas. Foi chamada de “macaca”. Disseram que ela devia “ficar na jaula”. Desanimada, passava os dias no sofá. Pensou em abandonar o esporte. “Foi muito triste para a família”, diz Raquel, irmã de Rafaela. “A gente tentava fazê-la esquecer, mas daí vinham essas coisas da internet”, conta. Em alguns momentos, diz Raquel, Rafaela esquecia que Londres já tinha passado e perguntava: “Quando é a Olimpíada mesmo?”.
Para tentar reerguer a caçula, Raquel a apresentou à coach esportiva Nell Salgado, que começava um trabalho no Instituto Reação, projeto social tocado por Flávio Canto (bronze em Atenas) e Geraldo Bernardes, técnico que descobriu as irmãs Silva. “Ela não acreditava mais em si mesma. Achava que ela era uma vergonha para a família, uma vergonha nacional”, afirma Nell. A psicóloga diz que foi devagarinho fazendo Rafaela relembrar a história dela, perguntando se tinha sido fácil chegar a uma Olimpíada, conquistar todos os títulos que ela tinha ganho. Nell puxou as recordações de infância de Rafaela. A judoca contou que brigava muito na rua. E confidenciou que batia em todo mundo porque as únicas coisas que ela tinha eram uma pipa e um par de chinelos. E que as outras crianças tentavam tirar isso dela. No fim do processo, Nell pediu a Rafaela que contasse como se via assistindo à Olimpíada do Rio pela TV, dali a quatro anos. “Ela chorou muito. E disse que seria uma dor insuportável.” Mas aquele reconhecimento foi o momento de virada de Rafaela. Naquele instante, Rafaela percebeu que devia estar no tatame dos Jogos que aconteceriam tão perto do lugar em que venceu tantas dificuldades, a Cidade de Deus. Rafaela voltou a treinar forte. Durante as lutas, Nell gritava da arquibancada: “Sua história!” “Sua pipa!”. Rafaela tatuou em seu bíceps direito os anéis olímpicos e a frase: “Só Deus sabe o quanto eu sofri e o que eu fiz para chegar até aqui”.
Além do trabalho psicológico, Rafaela se dedicou mais aos treinamentos. Os técnicos dizem que ela sempre gostou muito de competir, mas não se empenhava tanto nos treinos. “Ela achava que podia resolver tudo na competição”, diz Ney Wilson, gestor técnico de alto rendimento da Confederação Brasileira de Judô. “Punição maior para ela era cortá-la de alguma competição. Se cortasse recurso, pagamento, ela não ligava, mas competição...” Com a chegada de Yuko Fujii à comissão técnica, em abril de 2013, Rafaela começou a encarar os treinos com outra postura. “Quando eu dei o primeiro treino, o olho dela brilhou. E me apaixonei pelo judô da Rafa”, diz. Logo que Yuko começou o trabalho com a equipe, Rafaela conquistou o Mundial. Depois, vieram dois anos não muito bons: 2014 e 2015. A técnica falava para a atleta: “Eu não vou desistir. Eu vou ajudar, mesmo você não querendo. Vou ajudar até você ganhar”. Yuko diz que viu seu sonho de competir em uma Olimpíada se realizar por meio de Rafaela.
Muitos sonhos se realizaram na conquista de Rafaela. A campeã conheceu o judô como brincadeira de criança. Quando tinha 8 anos, seu pai, Luiz Carlos Silva, a levou com a irmã, três anos mais velha, para a academia em que Geraldo Bernardes, técnico do Brasil em quatro Olimpíadas, oferecia aulas de judô. O objetivo era tirá-las da rua e discipliná-las. “Percebi que elas tinham uma agressividade que poderia ser canalizada para o judô. E elas tinham coordenação motora – viviam brincando subindo escada, pulando muro”, diz. Geraldo, hoje com 73 anos, cumpriu a promessa que fez um dia às meninas: Rafaela e Raquel chegaram à seleção brasileira.
Outra pessoa que viu seu sonho se realizar por meio da conquista de Rafaela é sua noiva, a ex-judoca Thamara Cezar. As duas se conheceram no Reação, em 2008. Ficaram juntas por um tempo, mas brigas por ciúmes – das duas partes, diz Rafaela – levaram ao rompimento. Há três anos, retomaram o namoro e logo foram morar juntas. Fora do tatame, usam aliança na mão direita. Rafaela diz que não houve pedido de casamento formal. Mas já escolheram a data? Rafaela dá uma risada tímida: “Nada marcado”. Diz também que ainda não falam sobre filhos. “Já tenho muita responsabilidade: tenho três cachorros!”
Foi quando conheceu Thamara, aos 17 anos, que Rafaela decidiu contar aos pais que é homossexual. “Eu tinha medo de falar. Meu pai sempre foi muito rigoroso. Quando contei, ele ficou meio chocado, mas depois conversou comigo, disse que eu continuava sendo a filha dele e me apoiou totalmente. Foi o oposto do que eu estava esperando”, diz Rafaela. A irmã lembra bem também desse momento: “Eu estava vendo, mas fiquei fingindo que não estava nem ouvindo, olhando para o outro lado”. Raquel já sabia e nunca pensou que fosse uma questão a ser debatida. A judoca diz que a mãe, Zenilda, também gosta bastante de Thamara. “Nunca me discriminaram.”
A família sempre escolheu o judô. E o judô retribuiu as escolhas à família. Raquel também é judoca profissional, com bolsa e patrocínio. Com as vitórias das filhas, os pais conseguiram aumentar a casa de quarto e sala em que viviam na Freguesia, no bairro de Jacarepaguá, vizinho à Cidade de Deus. À porta do imóvel, a mãe toca uma mercearia, que vende de produtos de beleza a refrigerantes. E Luiz Carlos trabalha hoje fazendo fretes com uma Kombi comprada por Rafaela. Eles venceram com Rafaela.
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