A canoa escorrega lentamente pela lama endurecida, declive abaixo, até chegar na água. Deslizamos agora por um canal rodeado de manguezais. Construído pelos pescadores, o canal corre paralelo à praia banhada pelo Oceano Índico e facilita o acesso entre a cidade de Morondava e a vila de pescadores Betania.
Estamos em Madagascar, um dos países mais fascinantes que conheço. Não é a toa que essa é minha 14ª viagem à ilha, epicentro de uma diversidade natural e cultural ímpar. Aqui no litoral sudoeste habitam os Vezo, um grupo étnico seminômade, parte do intricado quebra-cabeças tribal do país. Betania é um dos povoados onde se concentram cerca de 1.200 Vezo.A região parece ter mudado pouco desde minha última visita há 20 anos. Nossa canoa aporta em uma península e, sob centenas de coqueiros, percebemos uma coleção de casinhas de palha. As crianças são as primeiras a correr em nossa direção. Nirina, nosso guia, explica em malgaxe a razão de nossa visita aos responsáveis da comunidade. Depois de uma longa conversa, o chefe entoa a palavra mágica “Tonga soa”, somos bem-vindos e podemos conhecer um pouco da maneira de viver dos Vezo.
A primeira parada é na sombra de uma frondosa árvore de neem. Originário da Índia, o neem se adaptou bem em Madagascar. Suas folhas e seu óleo essencial são usados na medicina local. Mas o que chama mesmo nossa atenção é o aroma exalado das pequenas flores brancas. Mesmo ao ar livre e com o sopro de uma leve brisa, a atmosfera mantem-se toda perfumada.
Sob a copa da majestosa árvore, uma jovem Vezo penteia seus fartos cabelos, sorridente. Seu rosto está coberto por uma máscara. “Aqui em Madagascar chamamos a mistura de masonjoany”, explica Nirina. “Ela é originária dos Comoros, mais precisamente da ilha de Anjouan, como diz o nome”. A pasta é feita com o pó seco do galho de alguma árvore, pulverizado com água. “Os Vezo usam galhos da árvore de tamarindo ou de balsa. Mas em outras regiões usa-se até mesmo sândalo”.
Segundo os locais, a pasta, além de proteger contra o sol e os insetos, hidrata a pele, tornando-a mais suave e podendo até retirar manchas. Do outro lado do Canal de Moçambique, a 700 km de distância, mulheres moçambicanas também utilizam uma mistura semelhante.
Continuamos nossa caminhada entre palhoças e coqueiros. Um dos habitantes nos oferece água de coco. Não dispensamos a oferta. Como um raio, o jovem da casa sobe no coqueiro – sem ajuda de nenhuma corda – e vai deixando cair as bombas verdes na areia fofa. Três cortes de facão no topo de cada coco e o néctar está a nossa disposição. É tão saboroso quanto no Brasil, mas custa 10 vezes menos.
Mas o centro das atividades Vezo está a meio quilômetro do vilarejo, na praia. Dezenas de canoas estão ancoradas na areia, todas cercadas por muitas pessoas que não param de trabalhar. Mulheres separam os peixes apanhados, homens consertam a rede de pescar. Uma família limpa o interior do barco, outra transporta a carga de volta para casa. A vida dos Vezo está intimamente ligada ao mar.
A palavra Vezo significa aquele que pesca e que luta para dominar o mar. Antropólogos malgaxes e europeus se depararam com um elemento inusitado ao estudarem a identidade Vezo. Todas as outras 17 tribos de Madagascar são reconhecidas por suas tradições ancestrais e por uma linhagem cultural bem definida. Já os Vezo não se caracterizam como uma etnia racial, mas sim pelo seu modo de vida, intimamente relacionado com a pesca e o mar.
Não importa o aspecto físico, o cabelo liso ou crespo e a cor da pele. O elemento que define o Vezo é sua intimidade com o mar. Se uma pessoa sabe construir e conduzir uma canoa, sabe pescar e tirar seu sustento do oceano e sabe vender seu produto, ela é Vezo. Por outro lado, se um indivíduo não consegue realizar as funções essenciais de um pescador, ele pode perder sua identidade Vezo. Passa, então, a ser um Manikoro, uma pessoa do interior das terras, um agricultor ou pastor de zebus.
A pesquisadora italiana Rita Astuti, que morou um ano em Betania, pondera que os Vezo não nascem como Vezo, mas constroem sua identidade. “As crianças e os jovens são considerados Vezo de acordo com as atividades Vezo realizadas por eles. Assim, até mesmo uma pessoa de fora da comunidade pode se tornar Vezo”. Ou seja, ser Vezo não é uma questão de linhagem sanguínea, mas sim de alma.
Com o sol a pino e um céu azul sem nuvens, nossa visita à Betania conclui-se com um mergulho no Oceano Índico. A temperatura da água a 28º C e as ondas acolhedoras estendem nossa estadia. Ninguém quer sair desse piscinão de Netuno.
Da praia, nossos amigos malgaxes curtem os mergulhos dos brasileiros. Quando voltamos, somos recebidos por sorrisos e aplausos. “Vocês sabem nadar muito bem”, afirma Nirina. Um dos membros da comunidade também sente orgulho de seus visitantes e diz algo em malgaxe. O texto é logo traduzido: “Esses brasileiros sabem nadar tão bem que estão se tornando Vezo”, afirma. “Afinal, saber nadar é essencial para ser Vezo”.
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