São Petersburgo recebe neste sábado (25) o sorteio das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018 à sombra do grave problema de racismo existente na Rússia. Na primeira rodada do campeonato local, na sexta-feira (17), o atacante ganês Emmanuel Frimpong, do Ufa, foi expulso após reagir a injúrias feitas por um torcedor e deve enfrentar uma dura suspensão. Na sequência, o atacante brasileiro Hulk, do Zenit St. Petersburg, contou que sofre com o racismo em quase todos os jogos.
Os casos são parte de uma triste realidade na Rússia. Como revelou um relatório conjunto da Fare Network, dedicada a combater a discriminação no futebol, e da Sova Center, uma ONG russa, as duas últimas temporadas do Campeonato Russo registraram 99 manifestações racistas e de extrema-direita e 21 crimes raciais.
Essa situação levanta dúvidas sobre a capacidade da Rússia de garantir um ambiente saudável para a jogadores, torcedores e jornalistas que visitarão o país de 14 de junho a 15 de julho de 2018. Há motivos para crer que é grande a possibilidade de fracasso.
A Copa da Rússia não é a primeira grande competição a sofrer críticas sobre racismo antes de sua realização, como pode comprovar quem acompanhou os preparativos para a Euro 2012 na Polônia e na Ucrânia. Da mesma forma, é um fato que a Rússia não tem o monopólio do racismo. Manifestações de preconceito perpassam o esporte em quase todo o mundo. Ainda assim, a preocupação se sustenta.
As medidas antirracismo tomadas pelas autoridades russas desde 2010, quando o país recebeu o direito de sediar o Mundial, não parecem ser eficientes. Além de não coibirem o racismo nos estádios, como mostra o relatório Fare/Sova, as multas e banimentos de torcedores não transmitem credibilidade quando o chefe da organização da Copa,Alexei Sorokin, minimiza o racismo lembrando que não é um problema exclusivo da Rússia. Também não ajuda o fato de o ministro dos Esportes, Vitaly Mutko, minorar a questão ao dizer que, durante a Copa, haverá “controles diferentes e uma estrutura diferente de torcedores”.
É certo que quem vai a um Mundial não é o torcedor comum, mas a troca de fãs não resolverá o problema. O racismo está arraigado na sociedade russa e encrustado no governo.
Atrás dos Estados Unidos, a Rússia é o segundo país que mais recebe imigrantes e tem o segundo maior contingente de trabalhadores estrangeiros. Com uma economia estagnada e uma política marcada pela corrupção generalizada, episódios de racismo e xenofobia têm se tornado comuns. Uma pesquisa de 2012 mostrou que 70% dos russos têm sentimentos negativos contra pessoas de outras etnias. As maiores vítimas são do Cáucaso e da Ásia Central, regiões majoritariamente muçulmanas, mas há inúmeros episódios de preconceito contra judeus, negros e povos não-eslavos em geral.
Desde o início de 2015, a ONG Sova registrou duas ameaças de morte, 33 feridos equatro assassinatos relacionados a questões raciais na Rússia, sem contar os diversos casos não notificados. Nos seis primeiros meses deste ano, 22 pessoas foram condenadas por crimes violentos de ódio e 89 por propaganda xenofóbica. Os números indicam que o combate ao racismo ocorre na Rússia, mas ele é inconsistente e seletivo. Segundo análise da Sova, muitos dos alvos da repressão ao preconceito são grupos dissidentes, seja do Kremlin como um todo ou de sua política no conflito com a Ucrânia.
O governo russo em si também parece ser um problema. Por um lado, a gestão de Vladimir Putin é permissiva com os racistas próximos a ela. Foi o caso do grupo que exibiu um show de luzes no qual o presidente dos EUA, Barack Obama, era exibido comendo uma banana. Outro caso é da deputada Irina Rodnina, correligionária de Putin no partido Rússia Unida. A tricampeã olímpica na patinação artística foi uma das porta-bandeiras na abertura dos Jogos de Inverno de Sochi-2014 mesmo após tweetar umafoto na qual insinuava que Obama é um macaco.
Ao mesmo tempo, Putin ajuda a fomentar uma ideologia nacionalista russa, no bojo da qual surgem o racismo e a xenofobia. Ele faz isso ao implementar uma política que prega tradicionalismo, autoritarismo e militarismo e ao enfatizar que os russos étnicossão “a espinha dorsal, o fundamento e o cimento de uma Rússia multiétnica”. Neste contexto, não surpreende que até a TV estatal russa tenha exibido no fim de 2014 um programa no qual recomendava não compartilhar bebidas alcoólicas com a “raça mongoloide”, termo degradante para chineses, japoneses, coreanos e outros asiáticos, pois eles teriam um “defeito genético” que os impediria de metabolizar álcool corretamente.
Como se vê, o racismo na Rússia está longe de ser circunscrito ao futebol. Ele afeta toda a sociedade e parece não haver ninguém capacitado para pressionar Moscou. A Fifa está mais preocupada com a investigação de corrupção sobre sua atuação e deve se concentrar em defender a escolha da Rússia para a Copa 2018, especialmente porque o presidente da força-tarefa antirracismo da entidade, Jeffrey Webb, foi preso na Suíça e deportado para os EUA acusado de integrar esquema de corrupção.
A três anos do início para a Copa do Mundo, é possível que torcedores, jornalistas e jogadores encontrem na Rússia um ambiente pouco amistoso para a disputa da competição. Seria um fracasso para a Rússia, para a Copa do Mundo e uma enorme mancha na história do futebol.
* José Antonio Lima é editor-executivo do site de “CartaCapital”. Tem como maior patrimônio os álbuns completos das Copas do Mundo de 1990 a 2014.
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