A terça-feira, dia 22 de março, começou ensolarada em Bruxelas. O clima daquele início de semana ainda ecoava a comemoração iniciada na sexta-feira, dia 18, quando a caçada a Salah Abdeslam, o único terrorista sobrevivente entre os autores dos atentados de novembro, em Paris, chegara ao fim. Depois de quatro meses escondido na Bélgica, Abdeslam foi apanhado a poucos metros da casa de seus pais. A captura parecia ter devolvido a costumeira sensação de segurança à Bélgica. Na própria terça-feira, entretanto, tão logo a população tomou as ruas para abrir os escritórios, o comércio e as escolas, os belgas perceberam que aquela sensação não se perpetuaria – talvez, nunca mais.
A notícia sobre duas explosões no aeroporto de Zaventem, em Bruxelas, às 8 horas da manhã, espalhou-se instantaneamente por rádios, TVs e sites locais. Pega de surpresa, a população que estava em trânsito manteve o trajeto. Assim, quando às 9h10 uma bomba explodiu dentro do metrô de Maelbeek, na região central da cidade, a estação estava cheia. O nível de alerta terrorista foi acionado. A cidade foi esvaziada. Ao final do dia, os dados oficiais contabilizaram31 mortos e mais de 300 feridos. Quatro meses depois de o Estado Islâmico ter feito 130 vítimas nos atentados de Paris, o grupo voltou a atacar. E a Europa foi mais uma vez lembrada daquilo que tentou negar por muito tempo: o terrorismo em seus domínios é uma ameaça real e difícil de ser combatida.
Os dois grandes ataques terroristas que tomaram Paris de assalto em2015, o do jornal Charlie Hebdo, em janeiro, e os ataques de novembro, já tinham exposto a fragilidade das autoridades europeias em lidar com o terrorismo. Um relatório confidencial de 55 páginas da polícia francesa, divulgado pelo jornal The New York Times, mostrou como os terroristas do Estado Islâmico se aproveitaram das falhas de controle nas fronteiras dos países europeus – agora realçadas pelo grande fluxo de refugiados do conflito na Síria que estão tentando entrar na União Europeia. Os investigadores descobriram que os terroristas se movimentaram com facilidade entre a Bélgica, onde planejaram os ataques, e a França – e, em alguns casos, entre o Oriente Médio e a Europa, mesmo tendo contra eles mandados internacionais de busca e prisão.
Há tanto razões político-culturais quanto circunstanciais para a ineficácia da ação antiterrorismo na Europa. Em primeiro lugar, a luta contra o terrorismo é antagônica com o Tratado de
Schengen, de 1985, um dos pilares da União Europeia (UE). O tratado aboliu o controle de fronteiras entre os países signatários (22 dos 28 membros da UE, além de outros quatro países) com o objetivo de promover a livre circulação de pessoas, serviços e produtos. Não é possível, porém, fazer um programa antiterrorismo eficaz sem o controle de fronteiras.
Schengen, de 1985, um dos pilares da União Europeia (UE). O tratado aboliu o controle de fronteiras entre os países signatários (22 dos 28 membros da UE, além de outros quatro países) com o objetivo de promover a livre circulação de pessoas, serviços e produtos. Não é possível, porém, fazer um programa antiterrorismo eficaz sem o controle de fronteiras.
A falta de articulação entre serviços de informação e de segurança é outra característica dos países europeus que facilita a ação das células terroristas. O relatório da polícia francesa mostra também como os serviços de Inteligência da Europa têm dificuldades para trocar informações entre si – por questões legais, práticas ou mesmo territoriais. “Não temos normas comuns mesmo para traduções de nomes de pessoas em árabe ou cirílico. Dessa forma, se alguém entra na Europa pela Estônia ou pela Dinamarca, ele não se registra com o mesmo nome com que é registrado na França ou na Espanha”, disse ao New York Times Alain Chouet, um antigo chefe do serviço de Inteligência na França.
A Bélgica, palco dos últimos ataques, enfrenta problemas ainda maiores que seus vizinhos na campanha antiterrorista. Lá, a falta de articulação existe também internamente. A Bélgica é um país bipartido, na cultura, na política e na organização. Divide-se em flamengos, falantes do holandês, e os valões, que falam francês. Há ainda um pequeno grupo que fala alemão. A diversidade cultural não seria um problema se ela não implicasse desarticulação política e organizacional. Por causa da cisão entre duas comunidades, o país constituiu uma democracia parlamentar bicameral, em que o critério de divisão das cadeiras de senadores e deputados é ditado pelo idioma. O número de parlamentares que falam o holandês e o francês deve ser igual. O ponto de união das comunidades é o rei.
Essa cizânia se reflete também na ação da polícia belga. As ações de investigação para encontrar o terrorista Salah Abdeslam expuseram a divisão que existe entre os sistemas de Inteligência e de segurança do país. “Desde o início das buscas, não havia dúvida de que Abdeslam estava no país e, ainda assim, foram precisos quatro meses para pegá-lo”, diz Russell A. Berman, professor de relações internacionais da Universidade Stanford, na Califórnia, Estados Unidos. “Toda a operação de captura mostrou a falta de articulação do setor de Inteligência belga entre si e com a comunidade muçulmana.”
Nos dias que se seguiram aos atentados em Bruxelas, revelou-se que as autoridades belgas já haviam identificado, na caçada a Abdeslam,outras células de ação terrorista no país. “A prisão de Abdeslam foi apenas um estopim. A Bélgica estava ciente das ameaças a seu território e não foi capaz de evitar os novos ataques. Isso diz muito sobre o despreparo atual do país para lidar com o terrorismo”, diz o cientista político Heni Ozi Cukier, especialista em relações internacionais. Um relatório divulgado em dezembro pelo grupo de segurança internacional Soufan Group mostra essa vulnerabilidade em números. A Europa Ocidental foi a região em que o Estado Islâmico recrutou o maior número de combatentes para lutar na Síria. Em 2015, 5 mil pessoas deixaram suas casas na Europa para se juntar ao Estado Islâmico. A Bélgica foi o país que mandou o maior contingente de combatentes per capita.
A maior parte dos combatentes europeus é treinada pelo Estado Islâmico para retornar a sua casa natal e continuar o jihad – a “guerra santa” dos fundamentalistas islâmicos – em solo europeu. Isso quer dizer que, ao contrário do que alguns políticos da extrema-¬direita europeia pregam, o terrorismo na Europa não chega com a multidão de imigrantes que fogem das regiões em conflito, principalmente da Síria. O terrorismo possui passaporte europeu – e passe livre na região.
Esse é o caso de Salah Abdeslam, francês nascido na Bélgica que coordenou os ataques de Paris, e dos dois terroristas identificados até agora nos ataques de Bruxelas, os irmãos belgas Ibrahim el-¬Bakraoui, de 27 anos, e Khalid el-Bakraoui, de 29. Isso quer dizer que mesmo que a Bélgica, a França e qualquer outro país da Europa decidam (e consigam) fechar suas fronteiras e bloquear as imigrações, eles ainda terão de lidar com a ameaça que surge de dentro de seus próprios territórios – uma ameaça que, talvez, nunca possa ser totalmente combatida.A aderência dos jovens europeus à radicalização do Estado Islâmico possui raízes extremamente complexas. Parte dos jovens, filhos e netos de imigrantes muçulmanos, se sente política e socialmente marginalizada, apesar de ter nascido na Europa. Por não se sentirem verdadeiramente integrados à cultura local, eles se sentem atraídos pela propaganda radical do Estado Islâmico.
Dois outros fatores aumentam a vulnerabilidade da Europa ao terrorismo. A ação dos combatentes do Estado Islâmico sofisticou-sea ponto de eles serem capazes hoje de apagar qualquer pegada digital – uma das principais formas de rastrear os grupos terroristas até há pouco tempo. As investigações dos atentados de Paris e de Bruxelas não encontraram mensagens de texto ou de voz nem detectaram ligações telefônicas. Aliado a isso, há outro risco: o da associação dos terroristas com organizações criminosas estabelecidas há décadas na Europa, o que facilitaria o tráfico de armas, de dinheiro, o acesso à documentação falsa e toda sorte de aparelhamento necessáriopara sofisticar ainda mais suas ações em solo europeu.Os reveses que o Estado Islâmico vem acumulando no último ano também contribuem para aumentar o risco dos ataques em massa. Depois de dois anos ampliando seu “território” na Síria e no Iraque, o grupo perdeu, em 2015, 14% de seus domínios na guerra que se desenrola naquela região (e corre agora o risco de perder 25% da área que ocupa). À medida que perde parte de seu território, é razoável esperar, pelo tipo de lógica pela qual opera, que o Estado Islâmico parta para a exibição de sua força de destruição, mirando as principais cidades da Europa e dos Estados Unidos.
A mobilização dos americanos depois do atentado às Torres Gêmeas em Nova York, em 2001, conseguiu frustrar até agora ataques terroristas como os ocorridos em vários países da Europa neste século (leia o quadro). Logo depois daqueles atentados, os Estados Unidos investiram US$ 40 bilhões em programas antiterrorismo. Ainda não é certo que a Europa conseguirá reagir contra o terrorismo da forma como os Estados Unidos fizeram. Seus obstáculos são gigantescos. Eles incluem as ofensivas ao Estado Islâmico, o combate a problemas sociais que contribuem para o insuflamento das comunidades muçulmanas, o combate ao crime organizado e, o que pode ser tão difícil quanto tudo isso: a admissão de que o sonho político e social chamado União Europeia, em seu formato atual, talvez seja incompatível com a era do terror. O certo é que negar o risco de novos ataques em massa não é mais uma opção para a Europa.
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