O que acontece durante 48 horas no Rio de Janeiro é o equivalente a uma guerra civil: corpos na calçada, tiroteios, execuções. Na Cidade Maravilhosa, a morte violenta virou banalidade. Os gatilhos da barbárie estão nas vias que à noite se tornam rota exclusiva de bandidos, nos arrastões que espalham o terror, na fuzilaria entre quadrilhas, na polícia mal equipada, encurralada, ausente e brutal. Com oito duplas de repórteres, VEJA acompanhou as ocorrências policiais das 20 horas da sexta 1º de julho às 20 horas do domingo. O saldo: 27 mortos, vinte feridos, dezenove tiroteios, sete arrastões.
Cuidado! Cenas fortes
sexta-feira, 1º de julho
20h45
Na rua escura que dá acesso à Rodovia BR-101, em São Gonçalo, na Grande Rio, o sangue escorre do corpo de bruços, iluminado por uma lanterna. Peritos reconstituem a cena da morte. Ao ser abordado por um ladrão de carro, o homem reagiu atirando. O ladrão, mesmo ferido, disparou de volta, acertando-o na nuca e nas costas. Depois, fugiu com o veículo. Antônio Oliveira, 42 anos, era sargento do Corpo de Bombeiros. Orgulhoso da farda, ele morreu fazendo bico, em trajes civis. Com o estado lhe devendo um mês de salário (o depósito seria feito cinco dias depois de sua morte), alugou um Voyage, registrou-se no Uber e passou a transportar passageiros nas folgas. A mulher do bombeiro, Bianca, soube da morte por uma rede social. Ela está grávida de quatro meses da terceira filha, a quem dará o nome de Maria Antônia. No enterro, domingo, dia 3, a marcha fúnebre das cornetas se misturava aos gritos de “o melhor bombeiro do Rio”. No estado, os latrocínios, nome técnico dos assaltos seguidos de morte, estão em alta. Foram 89 entre janeiro e maio, 37% a mais que no mesmo período de 2015. Os assaltos em geral batem recorde: um a cada quatro minutos.sábado, 2 de julho
9h
escuro da noite não é mais requisito para os assassinatos. Mata-se durante o dia. Uma câmera de segurança gravou a execução à queima-roupa de Sérgio de Almeida Júnior, 37 anos, pré-candidato do PSL a vereador em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ele entrava em seu carro quando outro veículo se aproximou. Escapou pela porta do passageiro, mas dois homens, encapuzados e com luvas, dispararam para matar. Berém do Pilar, como era conhecido, levou 21 tiros de pistola e fuzil na frente de casa. A câmera capturou o desespero de sua mulher ao abrir a porta da residência. Suspeita-se que políticos ligados a milícias estivessem incomodados com a popularidade do rival. Berém do Pilar foi o décimo pré-candidato à eleição de 2016 a ser assassinado na Baixada, área que engloba seis municípios. Ali, milícias e tráfico impõem suas leis. O patrulhamento é mínimo — um policial para cada 2 500 habitantes em alguns pontos. O recomendável é um para 250.
Onde não faltam homens, sobra truculência. As estatísticas de autos de resistência, quando a polícia alega ter atirado para se defender, escamoteiam uma cultura de faroeste em que a lógica é usar a arma, simples assim. A PM fluminense é a mais violenta do Brasil: matou mais de 8 000 pessoas na última década, segundo relatório da ONG Human Rights Watch. Nesse ambiente, até um prosaico saco de pipoca assusta. O enredo da morte do estudante Jhonata Alves, 16 anos, começou quando ele saiu da sua casa, em 30 de junho, e foi para a de uma vizinha atraído pelo cheiro gostoso de pipoca. Na volta, o garoto foi abordado por PMs que faziam a ronda no Morro do Borel, na Zona Norte. Segundo a família, confundiram o saquinho com drogas. “Ele levantou as mãos, soltou a pipoca e levou um tiro na testa”, conta a tia, Luana dos Santos, que no enterro, na tarde de sábado, trazia nas mãos cartuchos vazios que recolhera na rua. A avó socava o chão pedindo justiça. Outro parente exibia o saco de papel ensanguentado.
Cuidado! Cenas fortes
13h30
Onde não faltam homens, sobra truculência. As estatísticas de autos de resistência, quando a polícia alega ter atirado para se defender, escamoteiam uma cultura de faroeste em que a lógica é usar a arma, simples assim. A PM fluminense é a mais violenta do Brasil: matou mais de 8 000 pessoas na última década, segundo relatório da ONG Human Rights Watch. Nesse ambiente, até um prosaico saco de pipoca assusta. O enredo da morte do estudante Jhonata Alves, 16 anos, começou quando ele saiu da sua casa, em 30 de junho, e foi para a de uma vizinha atraído pelo cheiro gostoso de pipoca. Na volta, o garoto foi abordado por PMs que faziam a ronda no Morro do Borel, na Zona Norte. Segundo a família, confundiram o saquinho com drogas. “Ele levantou as mãos, soltou a pipoca e levou um tiro na testa”, conta a tia, Luana dos Santos, que no enterro, na tarde de sábado, trazia nas mãos cartuchos vazios que recolhera na rua. A avó socava o chão pedindo justiça. Outro parente exibia o saco de papel ensanguentado.16h
Duas crianças, dessas que um saco de pipoca faz felizes, observam um corpo estirado no chão. Não revelam espanto. Veem a cena com o olhar de quem se habituou a ela. Estão em Realengo, bairro da Zona Oeste, em tarde de sol forte. Anderson Patrício, 39 anos, duas passagens pela polícia, trabalhava em um lava a jato quando foi executado por onze tiros, disparados por dois homens em uma motocicleta. Casado, pai de três filhos, ele era funcionário de uma agência dos Correios. Num primeiro momento, seu corpo foi cercado por curiosos. “Olha, ainda está com a luva na mão”, alguém notou. Quando a polícia chegou, a maioria das pessoas tomava cerveja em um bar ao lado. Com o tempo, a curiosidade desapareceu. Elas foram para casa. E Anderson ali, no asfalto. É vida que segue na cidade em que 1 202 pessoas foram assassinadas em 2015. Em Chicago, campeã de homicídios nos EUA, foram 47019h
Corpos solitários, perfurados, espancados, à procura de um nome, pontuam a beleza estonteante da Baía de Guanabara. Demorou, mas, enfim, colegas reconheceram na noite de sábado Diego Machado, 29 anos, paraense, aluno de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), emoldurada pela natureza. Diego morava no alojamento dentro do câmpus. Era gay e era negro. A primeira hipótese da polícia: crime de homofobia. Antes do reconhecimento, quem viu o corpo não se abalou muito. “Aqui isso é normal, é uma área de desova”, disse uma aluna. A UFRJ, que está entre as melhores universidades do país, fica ao lado do Complexo da Maré, bunker de criminosos que aterrorizam a principal porta de entrada do Rio de Janeiro.
22h50
Marca registrada do terror imposto ao Rio, o arrastão não tem hora nem lugar. Pode acontecer a qualquer momento, em qualquer ponto — embora vias movimentadas e congestionadas sejam o alvo preferencial. Com frequência, os bandidos atiçam o clima de pavor incendiando ônibus. No sábado à noite, o Túnel Rebouças, a principal ligação entre as zonas Norte e Sul, de repente engarrafou. Bandidos fecharam uma pista e se puseram a roubar os motoristas encurralados. Nesse momento, o carioca sabe: sai do carro e corre na direção contrária. Ao todo, sete arrastões infernizaram o fim de semana no Rio. “Terrible”, disparou o prefeito Eduardo Paes sobre a situação da segurança, em entrevista em inglês à rede americana CNN.
1h46
Áudio de arrastão no Rio de Janeiro
Berrando de dor, o entregador de farmácia Alexandre Pinheiro, 40 anos, chega ao Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro. Seu estado choca até mesmo os calejados enfermeiros do pronto-socorro. Ele está coberto de feridas dos pés à cabeça. Para roubarem sua bolsa, cinco assaltantes o torturaram e espancaram com pedaços de pau pontilhados de pregos afiados. Jogado no meio da rua, foi atropelado. Um desconhecido chamou a ambulância. Alexandre sobreviveu.
4h15
Por força das circunstâncias, o Rio se tornou referência mundial no tratamento de ferimentos a bala. Dados da Secretaria de Saúde mostram que, de janeiro de 2015 até agora, os hospitais da rede municipal e estadual atenderam 4 053 vítimas de “projétil de arma de fogo”, ou PAF, no jargão local. Isso dá uma assustadora média de 7,4 baleados por dia. Na madrugada movimentada do Hospital Salgado Filho, na Zona Norte, Wellerson Rocha, 18 anos, chegou com uma perna atingida por tiro de fuzil em uma operação policial. Foi direto para a cirurgia. “Antigamente, PAF era sempre tiro de revólver. Agora, toda hora chega gente atingida por fuzil”, informa o diretor do Salgado Filho, João Berchmans. “Praticamos medicina de guerra. Estamos preparados para atuar em qualquer zona de conflito do mundo”, resume o cirurgião Bruno Bianco, do Souza Aguiar. Wellerson Rocha também sobreviveu.
7h30
O domingo na Vila Cruzeiro, na Zona Norte, começou como sempre. Traficantes atacaram a base 29 da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O confronto esquentou, os PMs pediram reforço e um blindado foi acionado para resgatar um grupo de viaturas acuadas. Saldo de duas horas de combate: dois policiais feridos e um traficante morto. Sete anos após a implantação do projeto das UPPs, todas as 38 voltaram a conviver com tiroteios. “Se estou na rua, deito no chão. Se estou em casa com as crianças, ficamos no quarto dos fundos ou no banheiro até terminar”, contou José Geraldo Silva, que cria sete filhos na Vila Cruzeiro. Há vários pontos das favelas “pacificadas” em que policiais não entram, ou entram só com blindados. Na mira de bandidos armados até os dentes, a tropa sofre baixas frequentes. Levantamento feito por VEJA enumera 418 PMs feridos e 37 mortos em UPPs desde 2008. Oito apenas neste ano.
Amparada no filho de 12 anos, Eveline Padilha, 35, chorava desconsolada no enterro do marido, o sargento da PM Wendel Lima, 38. Wendel entrou para as trágicas estatísticas de PMs mortos ao levar um tiro na frente dos dois, e da filha de 10 anos, pelo “crime” de ser policial. Num arrastão, deu ré para escapar e bateu no carro de trás. Os bandidos perceberam, chegaram perto, viram sua arma e o mandaram sair. Ele desceu com as mãos para cima. Foi sumariamente fuzilado. Era um sábado qualquer de um fim de semana qualquer de uma cidade que, a menos de trinta dias do início da Olimpíada, atrai a atenção do mundo. O Rio não é mesmo um lugar qualquer. Um aplicativo para smartphones, o Fogo Cruzado, acaba de ser lançado para monitorar os tiroteios que se espalham pela região metropolitana. Colaborativo, alimentado por cidadãos comuns, aponta os tiros como o Waze marca os nós do trânsito. Nas palavras de José Geraldo Camilo da Silva, marido de uma mulher ferida a bala durante o fim de semana triste e banal acompanhado pelos repórteres de VEJA: “Tinha de ser uma cidade maravilhosa”. Tinha.
VIAS E CABINES DESERTAS
OS MORTOS
Todas as 27 vítimas do fim de semana são do sexo masculino
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