Antes de começar a ser problematizado na mídia, a erotização precoce de meninas e adolescentes já era estudada por Jane Felipe de Souza, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2002, ela cunhou o termo "pedofilização", a partir do qual analisa as contradições dentro de uma sociedade que, ao mesmo tempo que cria leis para proteger a infância e a adolescência, promove a espetacularização e sexualização dos corpos infantis.
Conversamos com Souza sobre a problematização da sexualização precoce de meninas e como isso as afeta, tema da nossa edição 299/junho, que está nas bancas. Leia a seguir:
Na sua pesquisa você afirma que existem scripts, ou seja, ideias preconcebidas, do que se espera de um homem e de uma mulher antes mesmo de nascerem. O que compõe o script feminino?
Esses scripts vão mudando de acordo com o tempo histórico. Exemplo: há 100 anos seria inimaginável que as mulheres chegassem a certos postos de trabalho, é relativamente recente porque se pensava que as mulheres deveriam casar, ter filhos, não haveria necessidade de trabalharem e se alfabetizarem. Hoje, não se pensa assim, pelo menos em grande parte da sociedade ocidental, as mulheres têm acesso a educação e trabalho, da mesma forma que homens hoje podem usar bijuterias, coisas que antigamente se achavam que eram só do campo do feminino.
Esses scripts vão mudando de acordo com o tempo histórico. Exemplo: há 100 anos seria inimaginável que as mulheres chegassem a certos postos de trabalho, é relativamente recente porque se pensava que as mulheres deveriam casar, ter filhos, não haveria necessidade de trabalharem e se alfabetizarem. Hoje, não se pensa assim, pelo menos em grande parte da sociedade ocidental, as mulheres têm acesso a educação e trabalho, da mesma forma que homens hoje podem usar bijuterias, coisas que antigamente se achavam que eram só do campo do feminino.
Essas expectativas sociais vão mudando de acordo com o tempo histórico e com a cultura na qual o sujeito está inserido. Ser mulher hoje no Brasil é diferente de ser mulher no Irã, ou algum país em que as liberdades femininas não ganham tanto apelo. Esses scripts nada mais são do que roteiro, expectativas, que se estabelecem tanto para homens quanto para mulheres. Como achar que o homem precisa ser mais agressivo, por exemplo.
O conceito de gênero surge para questionar a ideia de uma essência ou natureza que explique os comportamentos. O grande problema é que a diferença entre homens e mulheres ou entre determinados grupos socialmente estabelecidos é quando essa diferença se transforma em desigualdade, como sempre aconteceu. No fim do século 19 alguns médicos e psicólogos diziam que homens eram mais inteligentes que as mulheres porque seus cérebros eram maiores. É essa necessidade de se pautar em aspectos biológicos para justificar diferenças, as colocando como desigualdade, inferioridade.
Você cunhou o termo pedofilização. O que ele significa?
A pedofilização como prática social contemporânea é um conceito que desenvolvo desde 2002 para tentar mostrar a interessante contradição que existe na nossa sociedade, que ao mesmo tempo em que faz leis para proteger a infância e adolescência, também coloca os corpos infantis dentro da perspectiva de espetacularização desses corpos e da sexualidade.
A pedofilização como prática social contemporânea é um conceito que desenvolvo desde 2002 para tentar mostrar a interessante contradição que existe na nossa sociedade, que ao mesmo tempo em que faz leis para proteger a infância e adolescência, também coloca os corpos infantis dentro da perspectiva de espetacularização desses corpos e da sexualidade.
É como se a sociedade dissesse assim: desejem os corpos femininos infantis. Então, como isso se expressa? Por exemplo, a indústria de lingerie fez e tem feito lingeries que imitam lingeries para mulheres adultas para bebês, ou então fazem sutiãs de bojo para bebês. Qual é o sentido disso para meninas tão pequenas?
Esse conceito também se desdobra em mais dois aspectos: por exemplo, colocar as meninas de uma forma erotizada nas suas roupas, em seus gestos, com roupas muito justas como se fossem mulheres adultas, você vê isso em bebês. Outro aspecto da pedofilização é acionar esse mundo considerado infantil para mulheres adultas, as colocando de forma infantilizada como fetiche, utilizar a infância como fetiche.
Em vários ensaios fotográficos as mulheres são colocadas com apetrechos infantis, agarradas em bichinho de pelúcia, roupinha que imita uma roupa colegial, coisinhas na cabeça e que imitam enfeites de menininhas. É colocar a mulher de um jeito infantil — a erotização a partir do viés infantil. É como se esse misto de ingenuidade e sedução fosse evocado para a visão masculina em especial. São esses desdobramentos que eu tenho trabalhado e alguns outros pesquisas tem sido feitas a partir desse conceito. Eu chamo isso [a pedofilização] de mau-trato emocional, violência emocional para com as meninas e mulheres, por que é como se dissesse a elas que só valem alguma coisa se seus corpos forem altamente erotizados, corpos para contemplação.
É como se a sociedade dissesse assim: desejem os corpos femininos infantis
E quando você ver nas redes sociais como as meninas se narram a partir das imagens pelas coisas que falam e escrevem si mesmas e sobre seus corpos, você vê claramente esse conceito em operação. A nossa sociedade está convocando os olhares, em especial os masculinos, para que desejem essas meninas, essas novinhas, essa crianças.
Quais são os efeitos disso nas meninas quando elas ainda estão descobrindo suas próprias sexualidades?
Elas estão sendo o tempo todo convocadas a ter um determinado tipo de padrão corporal, um tipo de comportamento que é extramamente violento
AutorVocê observa isso na publicidade, na moda, esse apelo, essa pressão. É importante a gente ver nesses artefatos culturais quais são os chamamentos para essa constituição de uma feminilidade hoje na nossa cultura. Não é à toa que há várias meninas com bulimia, anorexia, uma insatisfação generalizada com seus corpos.
Uma pesquisa mostra que as meninas muito jovens, crianças, insatisfeitas com seus corpos, inumeram uma lista de coisas que não gostam. Isso não é de graça, elas estão sendo o tempo todo convocadas a ter um determinado tipo de padrão corporal, um tipo de comportamento que é extramamente violento, que é um desrespeito a essas meninas. Por outro lado temos, isso é importante dizer, grupos de meninas que estão se rebelando contra esse ditames da cultura. Muitos grupos feministas, inclusive que atuam muito a partir do ciberfeminismo, para que essas questõs sejam apontadas, discutidas e problematizadas.
Parece ter ocorrido uma mudança na abordagem desse tema ao longo dos últimos meses. As pessoas parecem estar problematizando mais, principalmente por conta das redes sociais. Você que estuda essa temática há mais de uma década percebe uma mudança efetiva?
Eu tenho visto especialmente do final de 2015 pra cá dois momentos fundamentais: o #primeiroassédio que começou a discutir essas questões e um outro que chamaria a atenção é #meuprofessorabusador. Esses em especial convocam a sociedade a pensar nisso. Muitos homens ficaram chocados ao ver os relatos do #primeiroassédio porque não tinham uma dimensão do quanto as suas próprias filhas, irmãs, mães, passaram por situações extremamente constrangedoras, porque até então a sociedade achava isso normal.
Mas hoje muitos grupos feministas de meninas no ensino médio e nas universidade estão discutindo e pautando essas questões. Vejo que esses movimentos tiveram a maior importância para que isso acontecesse. Muitos desses movimentos que se fortaleceram a partir da internet e das redes sociais e têm tido uma importância muito grande para mostrar para a sociedade que essas coisas acontecem e que precisamos discuti-las e mudar as concepções machistas que até então vinham sendo articuladas e aceitas como normais. E hoje pautamos que não é normal, é uma violência, um desrespeito e precisamos discutir. Os homens precisam se educar; as famílias precisam educar seus meninos para que eles sejam mais respeitosos.
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